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SOBRE O ASSOMBROS

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Acredito que não seja imprescindível a um autor falar coisa alguma sobre um livro que escreveu a mais do que já está escrito, pois se é necessário explicar alguma coisa, é que ela ficou faltando e o livro ainda não estava pronto. E qualquer comentário sobre o significado do trabalho dado por um terceiro pode ser até mais lúcido do que o do próprio autor.

 

Mas há casos e casos. E uma exceção pode sempre ser aplicada, mesmo a uma regra rigorosa. No caso do meu romance Assombros Urbanos (Companhia das Letras), gostaria de abrir essa exceção, pois se trata de um trabalho com um tipo de composição que foge das técnicas usuais, muito embora não seja uma novidade, como procuro deixar claro abaixo. De fato, a história é feita através de algo parecido com o que em artes visuais é chamado colagem, um processo que vem da cultura POP, por sinal, um dos assuntos do livro.

A literatura tem um peso de tradição e no caso do romance há sempre uma aura de seriedade envolvida, embora diversos autores tenham utilizado o humor como estilo, entre eles alguns até bem sérios como Evelyn Waugh e Vargas Llosa. Isto para não falar de Machado de Assis e José Cândido de Carvalho, entre os nossos. É bem possível que algumas mãos se levantem com outros tantos exemplos, nos forçando a recuar até as raízes picarescas, incluindo aí Dom Quixote, esse delirante fundador da prosa romanesca moderna.

 

Assim, o humor que utilizei também em outros trabalhos está perfeitamente dentro da tradição. E a forma com que ele foi composto, através de diversos documentos não é, tampouco, novidade alguma, como atesta a tradição epistolar, ou seja, a da história contada por cartas. Vargas Llosa, um escritor que admiro muito, também utilizou expedientes semelhantes em seus livros mais engraçados, que li com grande prazer e que me influenciaram muito.

No Assombros há um agravante que pode ter causado alguma impressão de excessiva irreverência. Além do fato de o livro ser composto com muitas formas de escrita, como roteiros de televisão, matérias jornalísticas, diários íntimos, transcrição de reuniões de produção e de telefonemas noturnos (não havia internet ainda no tempo em que se passa a narrativa), informativo de vendas, letras de música, ensaio de costumes, contos e outras formas mais, optou-se por uma diagramação que utiliza caracteres diferentes para cada seção, alguns deles bem estranhos a quem está acostumado a ler, fugindo do habitual Times New Roman, Garamond, Arial, etc, etc. Isso pode ter gerado algo como uma sensação de brincadeira tipográfica, fugindo ao conteúdo literário propriamente dito.

 

Em alguns casos é utilizada a coluna do tipo jornalístico, pois se trata de matérias de jornal. A intenção, contudo, é que cada nova forma de escrita conduza sempre a narrativa para frente ou ilumine uma questão de um modo inesperado, o que de fato ocorre. Mas há, além deste projeto editorial, outra questão delicada que é a televisão como assunto... e como forma! Pois não se trata de uma história em que se relata em prosa romanesca com seus parágrafos e capítulos os bastidores de uma televisão, por exemplo, mas de assumir o modo de se escrever para televisão em algumas seções.

Isto é delicado porque a televisão desde o seu advento nos anos 50 sempre foi uma face da nossa cultura difícil de digerir, não obviamente para os milhões de pessoas que a assistem sem culpa, mas justamente para aquela parcela que trabalha com alta cultura.

 

Contudo, a televisão e o que ela trouxe faz parte estrutural do modo moderno de ver a vida, de uma fragmentação da visão contínua do corpo social, que foi sempre o assunto por excelência da literatura, transformando a vida ou a percepção dela numa realidade que pode ser resumida em ON e OFF, a câmera ligada ou desligada. Ou seja: a vida pode ser editada. 

E a própria vida que chamamos real, a vida em OFF, passa a ter características da vida em ON, na medida em que esta visão formata comportamentos. E mais: parece que a realidade ON assume certa superioridade simbólica, ou até ontológica, se o termo não for abusivo. As pessoas, ou grande parte delas gostariam de se alçar até a realidade ON, como se a partir dali a existência fosse mais justificada pelo foco da câmera, ou como se a pessoa chegasse a um plano existencial mais alto: ela passa a ser reconhecida, afirmada como personalidade. E isso de um modo como nunca antes havia ocorrido, pois qualquer pessoa, ou qualquer besteira, pode alcançar esse nível de significado trazido pela fama rápida.

A televisão sempre gerou antipatia em alguns e com razão, pelo comercialismo, pela vulgaridade, pela banalização, mas trouxe consigo um elemento democrático: os famosos quinze minutos. Pois a alta cultura, mesmo a mais engajada, é estruturalmente aristocrática. E a atitude POP, a elevação do POP como forma de arte nos anos sessenta, tornou clara essa divisão íntima no seio da cultura moderna, pois as histórias em quadrinhos passaram a ser exibidas nos museus, assim como a moda passou a ser levada a sério, e como os filmes B e até Z (ou alguns deles), viraram cults. E parece mesmo que essa produção cultural antes desprezada, como a ficção científica, também impactou ― e mais que isso ― comentou o seu tempo. É só dar uma olhada na grande produção de revistas desta espécie nos anos 50! Com suas ilustrações bombásticas e de qualidade artística duvidosa, elas fizeram, porém, e de forma inequívoca um fundo expressivo para o clima de guerra fria, de pós-bomba atômica, que permeou os anos dourados.

Além disso, boa parte dessa cultura expressou em sua produção um conteúdo de origem mitológica, que a alta cultura, principalmente a literária, havia varrido em nome da visão histórica e social. Não importa aqui a questão da qualidade, mas a da necessidade, quase de um respiro da consciência em se expressar de modo mítico, recuperando, ainda que em formas artísticas discutíveis essa gênese do pensamento poético. Essa cultura popularesca formou assim uma espécie de baú onde se escoava o imaginário mais delirante. E qualquer visão de conjunto da cultura do século passado que não levar em conta essa produção pecará por omissão, pois ela foi parte da paisagem e comentou a paisagem a seu jeito.  

Esse turbilhão de informações, essa “banca de revistas” com suas capas variadas que se tornou o mundo moderno, muitas vezes não podiam ser expressos de um modo contínuo, mas na forma de fragmentos ou de uma colagem com imagens superpostas, como a famosa capa do disco Sargent Peppers dos Beatles, um emblema daquele tempo que ainda é o nosso apesar de tudo. E não só a capa: nunca um disco exibiu uma coletânea musical tão variada formalmente. Cada música com um estilo diverso de arranjo e até de humor. Isso sem perder a unidade de fundo.

 

E a televisão como que agrega essas informações múltiplas com sua programação diversificada fragmentando a continuidade natural. A grade de programação com jornalismo, novela, programa de auditório, matutinos, vespertinos, filmes, seriados, etc, etc, contribuiu significativamente para esta visão multifacetada e não física da vida, ou seja, a vida através de imagens. Mesmo o jornalismo, o lado real da televisão, apresenta uma notícia pesada, seguida de uma leve, sem dar tempo de assimilar emocionalmente a primeira, inclusive quando ela é extremamente impactante, como o terrível assassinato de uma criança atirada da janela de um prédio pelos pais, por exemplo. Isso quando não possui um editorial que filtra as informações de acordo com a política da casa.

Entretanto, a televisão não é ela mesma o assunto de fundo do livro, antes o meio em que ele se articula. Um dos temas, ou subtextos da história é a carência em variadas formas, carência mais do que afetiva, carência de ser, esta que procura fama, que procura foco. Que anseia completude. Nossa miséria mais íntima, que alavanca o consumo, que gera audiência. Aquela miséria mais democrática ao atingir não apenas os despossuídos, mas a totalidade de nossa espécie, uma fome arcaica, difícil de saciar, pré-moderna, eterna.

 

Mas que se traduz existencialmente de modo diverso em cada tempo, ou em cada década, como fragmentamos a continuidade do tempo na modernidade, nessa historicidade histérica que nos assola. O livro se passa nos anos 80 e não por acaso. Aquela foi uma década cuja importância ― creio eu ― ainda não foi devidamente equacionada, ou mesmo expressa, como as décadas 60-70 decantadas como libertárias. Nos anos 80 parece que há um gargalo do tempo, ou antes, um momento de refluxo. Ele se abre com a AIDS fazendo sua entrada pestilenta exatamente sobre um ponto sensível nos anos anteriores, a liberação sexual. E termina com a queda do Muro de Berlim e o enorme peso simbólico deste acontecimento.

Me recordo que estive em Londres em julho de 1989 e havia pela cidade vários eventos falando sobre a Revolução Francesa que comemorava então 200 anos. Assisti inclusive ao musical Les Misérables, que fazia parte dessa celebração. Alguns meses depois, cai o muro. E a impressão é que aquela onda revolucionária iniciada na Bastilha sofria um refluxo. Houve um momento de grande perplexidade nos anos seguintes. Não que tudo o que havia sido feito ou que as velhas expectativas desaparecessem e as coisas sempre continuam em jogo de certa forma. Mas não há dúvida de que, ao se ler certos textos dos anos 60-70, se encontra um tom mais convicto que se perdeu irremediavelmente.

 

É como se iniciasse uma zona cinzenta, o que os ingleses chamam de “grey area”, um tempo de incertezas ou de indeterminação, como se alguma coisa estivesse já sem vida, mas nada se apresentasse em seguida. O personagem principal do livro, o Lima, entra nos anos 80, como um sobrevivente dos 60-70. E como alguém que viveu o lado alternativo daqueles tempos confusos, divididos entre liberação e autoritarismo. E não reconhece mais a paisagem. Há algo de quixotesco nele, de desadaptação, de não se encaixar em nada, de procurar sua persona como alguém procurando o graal. De ansiar por uma festa, não uma festa específica, antes um clima geral.

 

 

Nos anos 80 a televisão já era uma mídia mais do que consolidada, mas buscava novidades. O programa Perdidos na Noite, foi uma dessas novidades que antecipou a era da TV a Cabo, com seus inúmeros programas sobre todos os temas possíveis e imagináveis, desde como educar um cão irascível, até vizinhos assassinos e competições de chefs de culinária, isso para não falar dos reality-shows. Além disso, aquela década trouxe para nós (sempre num delay em relação aos Estados Unidos), o videocassete e o disk-pizza, muitas vezes oferecido pela mesma locadora. E isso encolheu mais ainda o espaço público, pois não era preciso ser rico para ter essas coisas. E por que ficar na fila do cinema se podemos assistir em casa, com todo o conforto?

 

 

No final da mesma década surgiram os primeiros microcomputadores, ainda com o sistema operacional DOS, aquela tela escura com letrinhas verdes, sem imagens. Recordo que fiquei impressionado quando alguns alunos de uma escola em que eu lecionava naquele tempo, me trouxeram trabalhos impressos em impressora de computador, com caracteres Times New Roman e parágrafos justificados, como nos livros. Era uma escola de alunos de classe média bem posta na vida e que podia arcar com essa aparelhagem inovadora. O Assombros se encerra antes que a informática, o Windows e a Web, engolfassem até mesmo até a televisão, mas de alguma forma os anuncia nessa obsolescência sem fim. Tais novidades e outras que virão já estão inscritas estruturalmente no DNA tecnológico do nosso tempo. E, a não ser no caso de uma gigantesca catástrofe, não tem volta, apesar de certo rancor humanista pela vitória do homem técnico.

Lima, ao fim, desaparece. Ninguém sabe dizer exatamente onde ele está. Estará buscando, talvez, respostas pessoais ou mais amplas para entender um tempo complicado, onde as utopias naufragaram em regimes medonhos e as bolhas do mercado tornam a vida mundial conectada em rede instável e tensa, num milênio que estreia com o 11 de Setembro e parece se abrir a um panorama mais confuso do que claro das relações humanas.

Continuamos, acredito, na grey area. Alguém pode até dizer que nunca saímos dela em tempo algum. A ironia é que continuamos nela na era mais informada de todas, com as mais elaboradas explicações sobre qualquer coisa. O romance pretende fazer um comentário irônico sobre aquelas décadas e sobre o impacto existencial da cultura eletrônica, do universo POP muito imagético, expressando-o literariamente o mais próximo possível da sua realidade difícil de captar. Também porque se dá num mundo urbano, de caráter internacional, longe do universo rural ou regional. 

 

Como construção este livro sofre a influência não apenas de outros livros, no encadeamento habitual da tradição literária, mas também de um universo cultural que inclui o cinema, as histórias em quadrinhos, a música e todo o supracitado universo POP, em que este autor se insere, alimentado que foi por ele desde cedo. Aliás, um cineasta como Woody Allen poderia servir de referência, não apenas pelo elemento non-sense, como pela citação de fontes diversas que há em seus filmes. Ele mesmo como personagem, com sua maneira de falar balbuciante e seu rosto estampando perene perplexidade, é um emblema do mesmo tipo de desorientação informada do Lima.

A ideia, enfim, foi fazer um livro cuja forma refletisse esse cosmos multilinguístico em que estamos inseridos. E um comentário crítico, com humor, a um signo enraizado profundamente - muito embora seja o mais das vezes um signo de superficialidade - no tempo em que vivemos. 

Quanto à menção inicial de que um escritor não necessitaria justificar o seu trabalho com mais palavras do que as utilizadas ao escrevê-lo, bem... se gastei tantas para justificar o meu, foi porque entendo que ele sai do paradigma habitual do romance pelas razões aventadas.

Dionisio Jacob

 

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